Os amigos são algo que todos nós pensamos ter, todos gostamos de ter e todos precisamos de ter, mas que só alguns de nós temos, verdadeiramente...
Quantas vezes não depositamos a nossa confiança em alguém e quando achamos que ela está entregue em boas mãos, somos apunhalados, com a frieza própria dos assassinos, despindo-nos de toda a nossa credulidade e confiança em quem nos rodeia?
Quando fazemos de um pai, um irmão, um companheiro o nosso melhor amigo, estamos a jogar tudo... Uma traição aí tem o seu impacto amplificado 100 vezes pois perdemos 2 ou 3 pessoas numa só.
E há traições que são imperdoáveis.
Tomemos como exemplo, um exemplo completamente escolhido ao acaso, o do Vítor.
Um tipo com uma vida simples, esforçada, por vezes dura, por vezes amarga.
Apesar do seu esforço em levar as coisas para a frente, a pessoa em quem mais ele deveria poder confiar, revelou não ser merecedora sequer de consideração...
Tomou-lhe tudo, ele deu-lhe tudo e quando ela lhe tinha tirado tudo, traiu-o.
Vítor tomou a única atitude possível e partiu.
Pelo correio chegou o final da lâmina que o trespassara há um ano, primeiro de forma inesperada, depois de uma forma lenta e dolorosa...
Eram os papeis do divórcio.
Sim, para além de ela lhe ter tirado tudo, queria mais.
Mas quando se tira tudo e nada fica, o que há mais para tirar?
A honra e a dignidade.
E essas, nenhum tribunal poderia penhorar!
Hoje, Vítor era um homem diferente.
Igual a si mesmo, mas mais maduro, forjado no fogo do desgosto e de onde emergiu qual fénix flamejante.
Agora tinha uma casa dele, tinha um carro, tinha o seu espaço e um emprego melhor.
Um emprego onde era respeitado e onde lhe davam a hipótese de mostrar o que valia.
E no trabalho, de alguns colegas acabou por fazer amigos...
Ou assim pensava ele...
-Desculpa, tens um agrafador que me emprestes?
-Herr... desculpa Vítor, mas não usas o teu porque...
-Não sei dele... tinha-o na minha secretária mas alguém o deve ter tirado de lá...
-Então e porque não usas um clip?
-Herr... eu precisava mesmo de agrafar estas folhas... um clip não dava...
-Eu até te emprestava o meu agrafador mas... sabes... já o tenho há muito tempo, acompanha-me desde o me início cá na empresa... tenho-lhe muita estima...
-Raúl, é um agrafador!!
-Desculpa mas não é um agrafador qualquer!!! É meu e se eu não quiser, não empresto!
-Pronto ok, tudo bem... Mas é só para agrafar aqui estas duas folhas...
-Epá desculpa mas não, para te emprestar a ti depois tenho de emprestar aos outros...
-Raúl, mas quais outros? Só estamos aqui nós os dois...
-Epá já disse que não e não insistas!!
-Vá lá...
-Não!
-Só um!!
-Não!
-Então podes agrafar-me tu?
-Ahhhh..... é melhor não, já tenho poucos agrafos e posso precisar...
-Raúl... eu peço mais depois...
-Ah, mas pode não haver!
-Então e se eu te der uns dos meus?
-Um do... não, não! O meu agrafador não está habituado aos teus agrafos, só aos meus... Pode encravar ou pior...
-hmpfff.... É que eu precisava mesmo de agrafar isto...
-Epá desculpa mas é que não posso mesmo, se fosse um clip eu até te dava mas assim não posso...
-Oh Raúl....
-Sim?
-O teu agrafador não é vermelho?
-É... porquê?
-O que faz na tua mesa um agrafador azul?! IGUAL AO MEU!!!
domingo, 25 de maio de 2008
segunda-feira, 12 de maio de 2008
Pequenas mudanças (8)
Segunda-feira, sete e dez da manhã....
"Caros ouvintes, passam dez minutos das sete, vamos ter a informação de transito já a seguir, com...
*krrrrkkkk.....*
(Hmmf... isto nem com rádio vai lá... que preguiça...)
Vítor já não tinha aquele despertador irritante...
Tinha ficado na casa velha, juntamente com a sua vida velha.
Despertador novo, vida nova... ah e casa nova também.
E emprego novo...
E... e... bom...
É incrível como tanto mudou num ano, pensava Vítor em voz alta.
Fazia 12 meses certos que estava na casa nova e de olhar para trás e de se lembrar de como tudo tinha sido e de como tudo era agora, parecia quase impossível.
A casa era pequena, é certo. O seu carro também não era propriamente de luxo...
O emprego era respeitável também, mas nada de outro mundo.
Os estudos também não davam para mais.
Mas tinha um espaço que era seu, fazia o que queria, dentro do que podia, quando queria, quando lhe apetecia.
Não tinha de dar satisfações a ninguém, só a ele mesmo.
Sentado na cama, olhava para o roupeiro e recordava o dia em que se mudou.
O dia em que lhe entregaram a mobília .
Em que lhe deixaram cair o sofá pelas escadas abaixo...
O raspão na parte detrás do sofá era tal que parecia o mapa do Brasil...
Ainda se lembrava de ter visto aquele papelinho no chão...
---------------------------------
PIQUENAS MODANÇAS
BARATO
RÀPIDO
TLF: 965648895
---------------------------------
Sem saber muito bem como, acabou por fazer uma espécie de negócio e ficou com umas mobílias "semi-novas" que um amigo lhe vendera. O amigo ia-se casar e comprar casa e então queria-se desfazer de algumas coisas.
O dinheiro não abundava e por isso, assim foi.
Como não podia fazer a mudança sozinho e com o seu pequeno Y10, teve de pedir ajuda a "profissionais especializados" e aquele papelinho era dono de um binómio apetecível:
"Barato e Rápido"...
-Ora... Nove, seis... cinco, seis, quatro... hmmm...ok...
*tiiiiiiit............tiiiiiiit..........tiiiiiit......*
-DAH!?
-Hãn!?
-DAH!!
-Estou sim?
-Quem falar?!
-Herrr.... Fala... olhe eu vi um papel na rua... dizia que fazia mudanças... se calhar enganei-me no número...
-Querer mudança?
-Sim... era para...
-Onde mora sinhor?
-Ainda não moro, vou morar só no...
-Morar em Lisboa?
-Herr.... sim... sim é em Lisboa...
-Muito bem sinhor! Dizer dia e Dmitry e colegas fazer mudança, não problema!
-Ok... aaah... e têm carrinha?
-Tem qué?
-Carrinha, para levar móveis...
-Sim, ter carro para transportar sinhor e mobilia! Não problema!!
-Ok então... eu depois ligo-lhe a dar a morada...
E ligou!
Pareceu-lhe um bocado manhoso, estar a meter um tipo de leste a fazer a mudança, mas a verdade é que o valor que ele cobrava por hora justificava o risco... e também lá por ser de leste não queria dizer que não fosse profissional e competente... ou assim ele pensou...
No dia da mudança, aparece-lhe à porta uma dupla, completamente improvável...
Vê chegar uma carrinha branca, já bem velhinha...
De lá de dentro sai um homem. Muito loooooooiro...
De seguida sai outro... muito escuuuro... daqueles que nem são bem pretos, são já quase roxos de tão escuros que são.
-Sinhor é sinhor que telefonou Dmitry por causa de mudança?
-Sim sou eu... herr... os seus colegas vêm noutra carrinha é?
-Colegas? Não ter colegas sinhor. Ser só Dmitry e aqui amigo Damir T!
-Damir T?
Diz-lhe o negrão do alto dos seus quase 2 metros, numa voz bem grossa, parecia uma tuba:
-É méu nome pá! Damir é o nome que a minha mãe mé pós! Damir T é nome de rua! Tem problema?
-Nnn...não... não tem problema... portanto Dmitry e Damir T... vou tentar não me esquecer...
(Oh mãe... só me calha disto...)
-Onde estar coisas sinhor? Poder começar a levar...
-Estão aqui na garagem... deixe-me ver qual é a chave...
O seu amigo tinha-lhe dado um molho de chaves todas muito parecidas... uma daquelas era a da garagem onde estavam arrecadados os móveis.
Aberta a garagem, Vítor ficou extremamente impressionado por ver Damir ou Damir T, para os amigos, a levantar um sofá de 3 lugares no ar, sozinho e com as próprias mãos...
Quando ia a perguntar se o homem precisava de ajuda, temendo pela integridade do seu sofá "semi-novo", a admiração deu lugar ao horror...
Ao fazer deslizar o sofá para dentro da carrinha, Damir, ou Damir T o carniceiro dos sofás e das mesas de cabeceira, tinha acabado de ceifar um pé ao sofá!!
-Oh pá, você acabou de me estragar o sofá!
-Qué!? Sofá tinha pé solto já pá! Não vistes o pé a cair sozinho?
-A cair soz... epá, deixa lá... eu depois colo isso ou assim, mas tenham mais cuidado com isso ok? Senão chego lá com tudo estragado...
O tamanho de Damir, ou Damir T o ceifador de extremidades salientes, era algo intimidatório e não aconselhava grandes reclamações...
-Não haver problema sinhor, não haver problema!
Ele não sabia porquê, mas aquelas palavras de Dmitry não o deixavam nem um pouco menos apreensivo ...
E foi assim que Vítor passou a ter um sofá de baloiço...
E uma mesa de jantar rítmica, que batucava ao ritmo dos talheres por lhe faltar uma borracha...
E uma mesa de cabeceira que se aguentava nas 3 pernas porque estava encostada à cama...
Bom, digamos que a mudança não correu a 100%, mas pronto.
Depois também acabaram por fazer um desconto no preço.
Ou mais ou menos...
Vítor no fim da mudança, algo triste por ver que o seu mobiliário tinha sofrido algumas mazelas ainda tentou regatear o preço...
Teve de abandonar essa ideia rapidamente, para o seu próprio bem, já que Damir dizia que precisava de ajudar a família e rejeitava categoricamente que tivesse sido ele a empenar o espelho do hall de entrada...
Por outro lado Dmitry afirmava que tinha de mandar "dinhêr para familia em Russia!"...
Ah e que o sofá tinha escorregado pelas escadas abaixo não porque ele fora descuidado, mas sim porque o sofá só tinha um pé para agarrar do lado dele... pois...
A imagem do pé do sofá a ser capado, levou a que Vítor não se alongasse nos seus intentos, pois se Damir levantava assim os sofás, o que seria se ele pusesse as mãos em cima do Vítor...
Vítor salta da cama e ao mesmo tempo pula para fora de todos aqueles pensamentos.
Já eram 7.30h.
Estava na hora de se arranjar para o trabalho...
Veste-se, come, sem vizinhos a falar alto no piso de cima, sem uma porca a ressonar no quarto ao lado...
Aí vai ele para mais uma segunda-feira...
"Caros ouvintes, passam dez minutos das sete, vamos ter a informação de transito já a seguir, com...
*krrrrkkkk.....*
(Hmmf... isto nem com rádio vai lá... que preguiça...)
Vítor já não tinha aquele despertador irritante...
Tinha ficado na casa velha, juntamente com a sua vida velha.
Despertador novo, vida nova... ah e casa nova também.
E emprego novo...
E... e... bom...
É incrível como tanto mudou num ano, pensava Vítor em voz alta.
Fazia 12 meses certos que estava na casa nova e de olhar para trás e de se lembrar de como tudo tinha sido e de como tudo era agora, parecia quase impossível.
A casa era pequena, é certo. O seu carro também não era propriamente de luxo...
O emprego era respeitável também, mas nada de outro mundo.
Os estudos também não davam para mais.
Mas tinha um espaço que era seu, fazia o que queria, dentro do que podia, quando queria, quando lhe apetecia.
Não tinha de dar satisfações a ninguém, só a ele mesmo.
Sentado na cama, olhava para o roupeiro e recordava o dia em que se mudou.
O dia em que lhe entregaram a mobília .
Em que lhe deixaram cair o sofá pelas escadas abaixo...
O raspão na parte detrás do sofá era tal que parecia o mapa do Brasil...
Ainda se lembrava de ter visto aquele papelinho no chão...
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PIQUENAS MODANÇAS
BARATO
RÀPIDO
TLF: 965648895
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Sem saber muito bem como, acabou por fazer uma espécie de negócio e ficou com umas mobílias "semi-novas" que um amigo lhe vendera. O amigo ia-se casar e comprar casa e então queria-se desfazer de algumas coisas.
O dinheiro não abundava e por isso, assim foi.
Como não podia fazer a mudança sozinho e com o seu pequeno Y10, teve de pedir ajuda a "profissionais especializados" e aquele papelinho era dono de um binómio apetecível:
"Barato e Rápido"...
-Ora... Nove, seis... cinco, seis, quatro... hmmm...ok...
*tiiiiiiit............tiiiiiiit..........tiiiiiit......*
-DAH!?
-Hãn!?
-DAH!!
-Estou sim?
-Quem falar?!
-Herrr.... Fala... olhe eu vi um papel na rua... dizia que fazia mudanças... se calhar enganei-me no número...
-Querer mudança?
-Sim... era para...
-Onde mora sinhor?
-Ainda não moro, vou morar só no...
-Morar em Lisboa?
-Herr.... sim... sim é em Lisboa...
-Muito bem sinhor! Dizer dia e Dmitry e colegas fazer mudança, não problema!
-Ok... aaah... e têm carrinha?
-Tem qué?
-Carrinha, para levar móveis...
-Sim, ter carro para transportar sinhor e mobilia! Não problema!!
-Ok então... eu depois ligo-lhe a dar a morada...
E ligou!
Pareceu-lhe um bocado manhoso, estar a meter um tipo de leste a fazer a mudança, mas a verdade é que o valor que ele cobrava por hora justificava o risco... e também lá por ser de leste não queria dizer que não fosse profissional e competente... ou assim ele pensou...
No dia da mudança, aparece-lhe à porta uma dupla, completamente improvável...
Vê chegar uma carrinha branca, já bem velhinha...
De lá de dentro sai um homem. Muito loooooooiro...
De seguida sai outro... muito escuuuro... daqueles que nem são bem pretos, são já quase roxos de tão escuros que são.
-Sinhor é sinhor que telefonou Dmitry por causa de mudança?
-Sim sou eu... herr... os seus colegas vêm noutra carrinha é?
-Colegas? Não ter colegas sinhor. Ser só Dmitry e aqui amigo Damir T!
-Damir T?
Diz-lhe o negrão do alto dos seus quase 2 metros, numa voz bem grossa, parecia uma tuba:
-É méu nome pá! Damir é o nome que a minha mãe mé pós! Damir T é nome de rua! Tem problema?
-Nnn...não... não tem problema... portanto Dmitry e Damir T... vou tentar não me esquecer...
(Oh mãe... só me calha disto...)
-Onde estar coisas sinhor? Poder começar a levar...
-Estão aqui na garagem... deixe-me ver qual é a chave...
O seu amigo tinha-lhe dado um molho de chaves todas muito parecidas... uma daquelas era a da garagem onde estavam arrecadados os móveis.
Aberta a garagem, Vítor ficou extremamente impressionado por ver Damir ou Damir T, para os amigos, a levantar um sofá de 3 lugares no ar, sozinho e com as próprias mãos...
Quando ia a perguntar se o homem precisava de ajuda, temendo pela integridade do seu sofá "semi-novo", a admiração deu lugar ao horror...
Ao fazer deslizar o sofá para dentro da carrinha, Damir, ou Damir T o carniceiro dos sofás e das mesas de cabeceira, tinha acabado de ceifar um pé ao sofá!!
-Oh pá, você acabou de me estragar o sofá!
-Qué!? Sofá tinha pé solto já pá! Não vistes o pé a cair sozinho?
-A cair soz... epá, deixa lá... eu depois colo isso ou assim, mas tenham mais cuidado com isso ok? Senão chego lá com tudo estragado...
O tamanho de Damir, ou Damir T o ceifador de extremidades salientes, era algo intimidatório e não aconselhava grandes reclamações...
-Não haver problema sinhor, não haver problema!
Ele não sabia porquê, mas aquelas palavras de Dmitry não o deixavam nem um pouco menos apreensivo ...
E foi assim que Vítor passou a ter um sofá de baloiço...
E uma mesa de jantar rítmica, que batucava ao ritmo dos talheres por lhe faltar uma borracha...
E uma mesa de cabeceira que se aguentava nas 3 pernas porque estava encostada à cama...
Bom, digamos que a mudança não correu a 100%, mas pronto.
Depois também acabaram por fazer um desconto no preço.
Ou mais ou menos...
Vítor no fim da mudança, algo triste por ver que o seu mobiliário tinha sofrido algumas mazelas ainda tentou regatear o preço...
Teve de abandonar essa ideia rapidamente, para o seu próprio bem, já que Damir dizia que precisava de ajudar a família e rejeitava categoricamente que tivesse sido ele a empenar o espelho do hall de entrada...
Por outro lado Dmitry afirmava que tinha de mandar "dinhêr para familia em Russia!"...
Ah e que o sofá tinha escorregado pelas escadas abaixo não porque ele fora descuidado, mas sim porque o sofá só tinha um pé para agarrar do lado dele... pois...
A imagem do pé do sofá a ser capado, levou a que Vítor não se alongasse nos seus intentos, pois se Damir levantava assim os sofás, o que seria se ele pusesse as mãos em cima do Vítor...
Vítor salta da cama e ao mesmo tempo pula para fora de todos aqueles pensamentos.
Já eram 7.30h.
Estava na hora de se arranjar para o trabalho...
Veste-se, come, sem vizinhos a falar alto no piso de cima, sem uma porca a ressonar no quarto ao lado...
Aí vai ele para mais uma segunda-feira...
segunda-feira, 5 de maio de 2008
A mecânica das coisas (7)
Uma casa branca.
.
..
...
Uma rotunda, um eucalipto no centro.
.
..
...
..............
Uma curva à esquerda e uma subida íngreme.
Raúl encosta o carro, baixa o som ao rádio, lança a beata do cigarro pela janela e diz no seu timbre seco com que sempre fala:
-Chegámos. Precisas que espere por ti?
-Não, obrigado... - Responde o colega - Podes ir andando, obrigado pela boleia.
-Ok, vemo-nos amanhã.
-Sim, adeus...
Vê Raúl arrancar no seu Rover cor de cereja, enquanto sacode o casaco para, em vão, tentar livrar-se do cheiro do tabaco.
(Que cheiro horrível...) - Pensa -
(Mania que as pessoas têm de fumar dentro do carro... Será que ele ainda não percebeu de onde veio aquela grande mancha amarela no tecto do carro?)
Olha para o outro lado da estrada e instantaneamente volta-lhe à memória a razão de estar ali. A razão de ter pedido boleia ao Raúl, um colega que normalmente entra no escritório mudo e sai calado. Talvez por isso lhe chamem coisas ternurentas como "o morto" ou "a planta"...
Bem, mas voltando ao que o trazia aquele bairro pouco aconselhável.
Atravessa a estrada e passa debaixo do letreiro que estava sobre a entrada:
"ForniCar"
No norte do país há pelo menos 4 localidades chamadas Fornelos e pelo sotaque do Sr. Esteves, ele ainda não tinha sido capaz de perceber de qual delas é que o homem era originário.
Na volta era dali de perto, de Alfornelos...
Mas aí podia-lhe ter dado um nome mais literado: AlfaCar!
Tudo para a sua viatura, de Alfa a Zeta!
Ou a Ómega... bem, de qualquer das maneiras, via-se que o Sr. Esteves era um homem de humor apurado para ter posto aquele nome à sua oficina...
-Bom dia!
-Bom dia, diga faxavor!
-O meu nome é Vítor Rocha, venho buscar o meu carro, que deixei cá para revisão. É um Lancia Y10...
-O seu nome por favor?
-Vítor Rocha.
-Vítor, Vítor, Vítor... É com ou sem c?
-É sem...
-Ah bom, porque é que não disse logo? O computador não adivinha e eu também não, não é homem? Ora Vítor... Rocha! Aqui está. É um Lancia Y10 não é verdade?
-É sim, tinha-lhe dito há pouco...
-E estava cá para quê? Foi batida foi?
-Não... Para revisão, também lhe tinha dito logo de início...
-Ora muito bem... Então é só um instante que eu vou só aqui imprimir a factura... Ora... Aqui está ela... Portanto, como lhe tinha dito ao telefone, não foi preciso mexer nos travões, nem na suspensão, o motor 'tava bom, o óleo também... Em baixo também não se mexeu...
Ao telefone, o Sr. Esteves tinha dito ao Vítor que após a revisão, pouca coisa tinha sido mexida, pelo que o Vítor, satisfeito, fazia contas a 200€ ou 300€ da revisão, o que até calhava bem porque as coisas não andavam famosas a nível de dinheiro.
-Ora então, são 1100 euros se faz favor!
Vítor baqueou...
Engoliu em seco e na sua cabeça ecoava aquela frase:
mil-e-cem-euros......
mil-e-cem-euros..........
mil-e-cem-euros...............
mil....
-Dd..desculpe?!
-Mil, cento e dois euros! Mas como é para si, fica a mil e cem vá!
-Então mas... Vítor... Rocha... sem C, é essa a factura que tem na mão, é?
-Claro homem, não é um Lancia?
-É sim... um Y10...
-Então, queria que a factura fosse de quem? Hoje em dia já ninguém tem essas caixas de fósforos eh eh... Nós aqui costumamos chamar-lhe o caixão com rodas, eh eh... Bem mas estava eu a dizer, vai pagar em dinheiro ou cartão?
-O caix... herr... bem, vou pagar com cartão... (epá acho que não tenho saldo para tanto!) Mas desculpe lá, diga-me lá o que é que foi mudado... o sr. Esteves tinha-me dito ao telefone que o carro até estava maneirinho...
-E estava e estava, para a idade que tem, não está nada mau, por isso é que também lhe ficou por este valor mais barato.
-Barat... então mas diga, pronto...
-Ora então, isto foi assim: o carro estava todo a funcionar, por mim nem lhe tinha mudado nada, mas aqui o Sr. Esteves como gosta de fazer as coisas pelo seguro, sempre pelo cliente, achou que devíamos trocar a correia de transmissão que já estava assim pró manhosa. Também é só 150€, elas agora tão ao preço da chuva!
E pronto foi só isso.
Só que depois a correia de origem já não se faz, logo foi preciso mandar vir uma nova que é maior e então não dá com os apoios do motor...
Assim, tivemos de mandar vir um apoio novo, e como não podem ficar com diferença uns prós outros, veio um kit de apoios novos, mais os respectivos suportes.
E o Sr. Esteves como é muito cauteloso disse assim: epá até parece mal estarmos a mudar os apoios do motor ao homem e deixarmos as velas e o carter por limpar. Mas depois também a mão-de-obra que o Sr. ia pagar para isso tudo mais valia mandarmos vir novos e então pronto, olhe também não era por mais 300€ que ia o gato às filhoses não é?
-Trezent...
-Ora então, disse que ia pagar com cartão não é verdade?
-Sim... (*suspiro*... a dor no peito não parecia querer passar...)
Vítor entrega o cartão, como quem está a entregar um filho para nunca mais o ver, o empregado passa o cartão e o ecrã pede o código...
****
[POR FAVOR AGUARDE]
...
.....
.......
(Ó que grande bronca, isto não vai passar...)
...
.....
........
[AGUARDE EMISSÃO DE RECIBO]
-BOA!!! herrr.... quer dizer, boa tarde que se está pôr agora para o fim do dia! eh eh...
-Pois... - responde o empregado meio sobressaltado pelo berro vigoroso de Vítor -
(Epá este mês vou ter de andar a sopas...)
-Então e diga lá, arranjaram-me o espelho lateral como eu pedi?
-O espelho... O espelho lateral? Ah sim, o espelho. Ah olhe que o espelho não precisava de arranjo, o Sr. tem é de carregar naquilo com força.
-Com força?
-Sim sim, venha cá que eu mostro-lhe!
Entra o empregado para o carro, um Lancia Y10, e carrega no botão da porta que faz mexer o espelho.
Nada...
-Tá a ver? aperta aqui...
Nada...
-Assim... humpf... hrgggrr...
O espelho jazia inerte...
-Epá, agora não tá a dar... Há pouco.. hrrrrrrrrrrgggggrrrrrr..........
Vítor observava estupefacto que apesar do orçamento enorme que lhe havia sido apresentado, estava à vista que o trabalho realizado não tinha sido dos mais bem executados...
Para além disso, a força empregue pelo empregado da oficina no botão, parecia querer forçar a porta do carro para além dos seus limites...
-Pronto... bem... já sabe que só tem de carregar com força, que isto o espelho está bom, o botão é que tem mau contacto... mas é só apertar com força...
-Então mas... - ia Vítor interpelar -
-Aqui em relação às luzes, tinha-me dito que o farol esquerdo estava mais baixo que o direito, mas não, você é que tem de regular aqui neste botão está a ver?
Ora... Epá...
Olha por acaso só está a subir o direito, mas isto é porque só estou eu aqui no carro, isto com mais peso, o carro sobe a frente e já ficam as luzes iguais...
Vítor estava desolado... Mas pronto, já tinha pago, pouco mais havia a fazer... Se pedisse para lhe arranjarem as luzes e o espelho ainda ia pagar mais... Mais valia estar calado...
-Não sei se precisa de mais alguma coisa...
-Não... está tudo...
-Pronto aqui tem a chave então, obrigado e volte sempre!
(Volto nunca...)
Nisto aparece o Sr. Esteves...
-Então rapaz! Que tal? Ficou aí com um servicinho à maneira e por um preço que se contar a alguém nem acreditam já viu?
-Pois... nem eu acredito ainda...
-Então, que cara é essa? Não me diga que achou caro!?
-Eu por acaso... confesso que não estava à espera deste valor, depois do que me disse ao telefone...
-Mas estava à espera de mais ou menos?
-Mais, mais... assim dá gosto pagar... baratíssimo, baratíssimo...
(Levam-me o dinheiro mas não me levam o orgulho!!)
-Então pronto! olhe se precisar de alguma coisa, passe por cá, estamos abertos todos os dias!
-Sim, sim, passo, passo...
(Se estiver bêbado ou assim...)
Vítor pega no seu Y10, um Lancia e sai da oficina, seguindo caminho rumo a casa.
Continua a ecoar na sua cabeça o valor da reparação e quase que tem vontade de ir à esquadra da policia participar um assalto...
Mas pronto, segue para casa, já não há nada a fazer...
.
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...
Uma rotunda, um eucalipto no centro.
.
..
...
..............
Uma curva à esquerda e uma subida íngreme.
Raúl encosta o carro, baixa o som ao rádio, lança a beata do cigarro pela janela e diz no seu timbre seco com que sempre fala:
-Chegámos. Precisas que espere por ti?
-Não, obrigado... - Responde o colega - Podes ir andando, obrigado pela boleia.
-Ok, vemo-nos amanhã.
-Sim, adeus...
Vê Raúl arrancar no seu Rover cor de cereja, enquanto sacode o casaco para, em vão, tentar livrar-se do cheiro do tabaco.
(Que cheiro horrível...) - Pensa -
(Mania que as pessoas têm de fumar dentro do carro... Será que ele ainda não percebeu de onde veio aquela grande mancha amarela no tecto do carro?)
Olha para o outro lado da estrada e instantaneamente volta-lhe à memória a razão de estar ali. A razão de ter pedido boleia ao Raúl, um colega que normalmente entra no escritório mudo e sai calado. Talvez por isso lhe chamem coisas ternurentas como "o morto" ou "a planta"...
Bem, mas voltando ao que o trazia aquele bairro pouco aconselhável.
Atravessa a estrada e passa debaixo do letreiro que estava sobre a entrada:
"ForniCar"
No norte do país há pelo menos 4 localidades chamadas Fornelos e pelo sotaque do Sr. Esteves, ele ainda não tinha sido capaz de perceber de qual delas é que o homem era originário.
Na volta era dali de perto, de Alfornelos...
Mas aí podia-lhe ter dado um nome mais literado: AlfaCar!
Tudo para a sua viatura, de Alfa a Zeta!
Ou a Ómega... bem, de qualquer das maneiras, via-se que o Sr. Esteves era um homem de humor apurado para ter posto aquele nome à sua oficina...
-Bom dia!
-Bom dia, diga faxavor!
-O meu nome é Vítor Rocha, venho buscar o meu carro, que deixei cá para revisão. É um Lancia Y10...
-O seu nome por favor?
-Vítor Rocha.
-Vítor, Vítor, Vítor... É com ou sem c?
-É sem...
-Ah bom, porque é que não disse logo? O computador não adivinha e eu também não, não é homem? Ora Vítor... Rocha! Aqui está. É um Lancia Y10 não é verdade?
-É sim, tinha-lhe dito há pouco...
-E estava cá para quê? Foi batida foi?
-Não... Para revisão, também lhe tinha dito logo de início...
-Ora muito bem... Então é só um instante que eu vou só aqui imprimir a factura... Ora... Aqui está ela... Portanto, como lhe tinha dito ao telefone, não foi preciso mexer nos travões, nem na suspensão, o motor 'tava bom, o óleo também... Em baixo também não se mexeu...
Ao telefone, o Sr. Esteves tinha dito ao Vítor que após a revisão, pouca coisa tinha sido mexida, pelo que o Vítor, satisfeito, fazia contas a 200€ ou 300€ da revisão, o que até calhava bem porque as coisas não andavam famosas a nível de dinheiro.
-Ora então, são 1100 euros se faz favor!
Vítor baqueou...
Engoliu em seco e na sua cabeça ecoava aquela frase:
mil-e-cem-euros......
mil-e-cem-euros..........
mil-e-cem-euros...............
mil....
-Dd..desculpe?!
-Mil, cento e dois euros! Mas como é para si, fica a mil e cem vá!
-Então mas... Vítor... Rocha... sem C, é essa a factura que tem na mão, é?
-Claro homem, não é um Lancia?
-É sim... um Y10...
-Então, queria que a factura fosse de quem? Hoje em dia já ninguém tem essas caixas de fósforos eh eh... Nós aqui costumamos chamar-lhe o caixão com rodas, eh eh... Bem mas estava eu a dizer, vai pagar em dinheiro ou cartão?
-O caix... herr... bem, vou pagar com cartão... (epá acho que não tenho saldo para tanto!) Mas desculpe lá, diga-me lá o que é que foi mudado... o sr. Esteves tinha-me dito ao telefone que o carro até estava maneirinho...
-E estava e estava, para a idade que tem, não está nada mau, por isso é que também lhe ficou por este valor mais barato.
-Barat... então mas diga, pronto...
-Ora então, isto foi assim: o carro estava todo a funcionar, por mim nem lhe tinha mudado nada, mas aqui o Sr. Esteves como gosta de fazer as coisas pelo seguro, sempre pelo cliente, achou que devíamos trocar a correia de transmissão que já estava assim pró manhosa. Também é só 150€, elas agora tão ao preço da chuva!
E pronto foi só isso.
Só que depois a correia de origem já não se faz, logo foi preciso mandar vir uma nova que é maior e então não dá com os apoios do motor...
Assim, tivemos de mandar vir um apoio novo, e como não podem ficar com diferença uns prós outros, veio um kit de apoios novos, mais os respectivos suportes.
E o Sr. Esteves como é muito cauteloso disse assim: epá até parece mal estarmos a mudar os apoios do motor ao homem e deixarmos as velas e o carter por limpar. Mas depois também a mão-de-obra que o Sr. ia pagar para isso tudo mais valia mandarmos vir novos e então pronto, olhe também não era por mais 300€ que ia o gato às filhoses não é?
-Trezent...
-Ora então, disse que ia pagar com cartão não é verdade?
-Sim... (*suspiro*... a dor no peito não parecia querer passar...)
Vítor entrega o cartão, como quem está a entregar um filho para nunca mais o ver, o empregado passa o cartão e o ecrã pede o código...
****
[POR FAVOR AGUARDE]
...
.....
.......
(Ó que grande bronca, isto não vai passar...)
...
.....
........
[AGUARDE EMISSÃO DE RECIBO]
-BOA!!! herrr.... quer dizer, boa tarde que se está pôr agora para o fim do dia! eh eh...
-Pois... - responde o empregado meio sobressaltado pelo berro vigoroso de Vítor -
(Epá este mês vou ter de andar a sopas...)
-Então e diga lá, arranjaram-me o espelho lateral como eu pedi?
-O espelho... O espelho lateral? Ah sim, o espelho. Ah olhe que o espelho não precisava de arranjo, o Sr. tem é de carregar naquilo com força.
-Com força?
-Sim sim, venha cá que eu mostro-lhe!
Entra o empregado para o carro, um Lancia Y10, e carrega no botão da porta que faz mexer o espelho.
Nada...
-Tá a ver? aperta aqui...
Nada...
-Assim... humpf... hrgggrr...
O espelho jazia inerte...
-Epá, agora não tá a dar... Há pouco.. hrrrrrrrrrrgggggrrrrrr..........
Vítor observava estupefacto que apesar do orçamento enorme que lhe havia sido apresentado, estava à vista que o trabalho realizado não tinha sido dos mais bem executados...
Para além disso, a força empregue pelo empregado da oficina no botão, parecia querer forçar a porta do carro para além dos seus limites...
-Pronto... bem... já sabe que só tem de carregar com força, que isto o espelho está bom, o botão é que tem mau contacto... mas é só apertar com força...
-Então mas... - ia Vítor interpelar -
-Aqui em relação às luzes, tinha-me dito que o farol esquerdo estava mais baixo que o direito, mas não, você é que tem de regular aqui neste botão está a ver?
Ora... Epá...
Olha por acaso só está a subir o direito, mas isto é porque só estou eu aqui no carro, isto com mais peso, o carro sobe a frente e já ficam as luzes iguais...
Vítor estava desolado... Mas pronto, já tinha pago, pouco mais havia a fazer... Se pedisse para lhe arranjarem as luzes e o espelho ainda ia pagar mais... Mais valia estar calado...
-Não sei se precisa de mais alguma coisa...
-Não... está tudo...
-Pronto aqui tem a chave então, obrigado e volte sempre!
(Volto nunca...)
Nisto aparece o Sr. Esteves...
-Então rapaz! Que tal? Ficou aí com um servicinho à maneira e por um preço que se contar a alguém nem acreditam já viu?
-Pois... nem eu acredito ainda...
-Então, que cara é essa? Não me diga que achou caro!?
-Eu por acaso... confesso que não estava à espera deste valor, depois do que me disse ao telefone...
-Mas estava à espera de mais ou menos?
-Mais, mais... assim dá gosto pagar... baratíssimo, baratíssimo...
(Levam-me o dinheiro mas não me levam o orgulho!!)
-Então pronto! olhe se precisar de alguma coisa, passe por cá, estamos abertos todos os dias!
-Sim, sim, passo, passo...
(Se estiver bêbado ou assim...)
Vítor pega no seu Y10, um Lancia e sai da oficina, seguindo caminho rumo a casa.
Continua a ecoar na sua cabeça o valor da reparação e quase que tem vontade de ir à esquadra da policia participar um assalto...
Mas pronto, segue para casa, já não há nada a fazer...
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